O tempora! O cynismus!

Por Flávio Dutra

Estamos vivendo a era de fortes confrontos de ideias e polarização extremada de posições, mas ainda existe espaço para o bom e honesto cinismo. Bom e Honesto, aqui, com sentido de generosidade, um cinismo pra não magoar.

Há, pelo menos, duas situações clássicas em que o cinismo se manifesta em seus melhores momentos.

- Não  leve a mal, porque é uma crítica construtiva.

- Respeito muito a tua posição, mas...

No primeiro caso, a advertência é seguida de uma crítica demolidora, que joga pra baixo o alvo da manifestação, só que atenuada pela tal crítica construtiva e o criticado nem se anima a reclamar. Não adianta, gente, crítica é crítica e sua versão construtiva é uma balela.

A posição respeitada, no segundo caso, sobrevive apenas à primeira frase do contraditório, sendo desconstruída - ou destruída - na sequência. Respeito, uma ova!

E tem aquela muito usada para romper relacionamentos, sem provocar grandes ressentimentos: "O problema não é contigo, é comigo". Pura falsidade!

No andar de cima o cinismo campeia e atinge o estado da arte. No STF, cada voto por  "amor à Constituição", como diria aquele primo do Collor, na verdade, parece esconder a defesa de interesses pra lá de questionáveis. No parlamento, aqueles "Vossa Excelência" quando dirigidos à adversários políticos são o que há de enganadores. Mais do que tratamento cerimonial exigido pelo protocolo, representam embuste em grau máximo. Não é o que o ocupante da tribuna pensa daquele "salafrário, que eu conheço bem", que agora está a contestá-lo. O protocolo é o cinismo institucionalizado.

Esse pessoal até poderia dar aula ao presidente Bolsonaro, que não tem o mínimo de refinamento na aplicação do cinismo, tanto no trato com adversários como com os companheiros.

Bolsonaro surpreende - aliás, nem surpreende mais - por ser direto e transparente. Não tomem isso como elogio, apenas é o reconhecimento de uma situação de fato.

Em se  tratando de cinismo, o correto seria olhar para a Grécia Antiga, onde os cínicos eram conhecidos por desprezarem as convenções sociais. Pessoas de vida errante, maltrapilhas, empenhavam-se em discursar contra os valores morais da sociedade da época. Era uma corrente filosófica que tinha em Diógenes (século IV, a.C), apelidado de O Cínico, seu representante mais expressivo. Diógenes procurava a virtude de uma vida simples e natural, dessa simplicidade e espontaneidade de que são feitas as pessoas do bem, diferentemente da análise do filósofo alemão Peter Slotedijk. Em "Crítica à razão cínica", de 1983, ele descreve o cinismo da sociedade contemporânea como reflexo de um individualismo extremo que o cenário mundial delineou para todos. Vale lembrar que Slotedijk esteve em Porto Alegre, em 2016, no Fronteiras do Pensamento.

A análise dele se aplica integralmente ao Brasil atual, um país dividido em todos os níveis, pleno de intolerâncias, carente de lideranças confiáveis, terra do vale-tudo, de tênues barreiras entre o certo e o errado e onde o cinismo nas relações parece ser o sentimento unificador.

Pensando bem, de forma pragmática, talvez seja melhor assim. Nestes tempos conturbados em que vivemos já estou achando, em favor de um pouco de leveza no cotidiano, que uma boa dose de cinismo é necessária para o país e mal não faz.  Assim, sai de cena o brasileiro cordial de Sérgio Buarque de Holanda e entra o brasileiro cínico da era bolsonarista e pós-PT. Vai ver são da mesma matriz.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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