Renato Canini: O pai do Zé Carioca

O desenhista tem em seu currículo um feito inédito: quebrou os paradigmas de Walt Disney e deu identidade a um personagem brasileiro como poucos, o Zé Carioca.

Para contar a história do desenhista gaúcho Renato Vinícius Canini, que acaba de ser celebrado com uma edição especial da série Mestres Disney, da Editora Abril, é imprescindível lembrar de outra história paralelamente: aquela antiga, talvez até injusta, que fala sobre o gringo que vem ao nosso país só para roubar as riquezas nacionais e depois voltar para casa cheio de moral. Na origem do "brasileiro" mais famoso dos quadrinhos, o Zé Carioca, existe uma lenda desse tipo.


Em 1941, os Estados Unidos praticavam uma política de boa vizinhança com os países da América Latina para buscar apoio na II Guerra Mundial. O próprio medalhão em pessoa, Walt Disney, foi convocado para bancar o relações públicas do país, e naquele mesmo ano desembarcou no Brasil atrás de idéias para representar aquela união de povos tão bonita e sincera. Dizem que o criador do Mickey gostou muito dos desenhos de um cartunista local, o J. Carlos, sobre um personagem clássico do anedotário brasileiro: o papagaio. De volta a seus estúdios, Walt Disney bolou um nome - Joe Carioca - e faturou um bom dinheiro com os longas-metragens Alô, Amigos! (1943), Você Já Foi à Bahia? (1945) e Melodia (1948).


Passada a fase cinematográfica, o personagem só foi abrasileirado de fato com sua transição para as histórias em quadrinhos. Foram nelas que o Joe virou Zé, principalmente através das mãos de seu maior artista, Renato Canini. Por ironia, foi pelo trabalho desse gaúcho que o Zé virou um carioca de verdade, a partir do começo dos anos 70, com histórias sobre malandragem, favelas, samba, futebol, macumba, fuga dos cobradores, a identidade secreta de Morcego Verde, a amizade com os vizinhos e a enrolação para cima da namorada.


Criação e frustração


Assim, sem nem sequer perceber, Canini transgrediu padrões de roteiros e de desenhos da Disney, desagradando os chefes americanos por reproduzir nas histórias uma realidade social não tão confortável quanto a do Tio Patinhas, por exemplo. "E o meu estilo de desenhar sempre foi um pouco diferente. Eles prezavam por um padrão muito certinho, e isso me limitava, frustrava a minha vontade de criar", conta o desenhista de 69 anos, que ainda é considerado um dos melhores traços do humor nacional.


"Apesar dessa história toda, eu jamais conheci o Rio de Janeiro", revela gargalhando. Canini só saiu do Rio Grande do Sul para morar em São Paulo, onde desenhou para a Igreja Metodista e, logo depois, para a Editora Abril, que até hoje publica os quadrinhos da Disney por aqui. Nascido em Paraí, na Serra gaúcha, foi em Frederico Westphalen - na época a cidade chamava-se Barril - que ele viveu boa parte de sua infância, rabiscando durante tardes inteiras em lajotas na frente de casa. Aos 10 anos, logo após a morte do pai, farmacêutico que também adorava desenhar e o incentivava muito, o menino foi morar com a tia e a avó em Garibaldi. "Mas não me agüentaram por muito tempo. Eu incomodava tanto, que me mandaram para um internato em Gravataí, e depois para outro em Passo Fundo", lembra, gargalhando de novo.


O primeiro emprego veio aos 21 anos, na revista Cacique, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado. Mas a publicação acabou, e Canini continuou como funcionário público até os 31, fazendo desenhos técnicos de engenharia - um trabalho que "achava um saco". O prazer que ele tinha era com as colaborações que fazia, elaborando charges para o Correio do Povo, TV Piratini, Pasquim, Pancada e outras publicações alternativas. Foi quando um pastor paulista da Igreja Metodista veio buscá-lo pessoalmente para desenhar as ilustrações bíblicas de uma revista, em São Paulo. "Naquela época, eu não era tão crente quanto sou hoje. Se fosse, acho que teria ficado mais tempo trabalhando para a Igreja", e ri mais uma vez.


"Depois de dois anos trabalhando para os pastores, eu tava de olho na Recreio, da Abril, que fazia mais a minha cabeça". E conseguiu o que queria. Na editora, além de desenhar e escrever a revista Recreio e presentear o Zé Carioca com uma identidade marcante, Canini criou o caubói Kactus Kid, uma hilariante paródia aos mocinhos do faroeste, publicado na extinta revista Crás!. Ele ainda foi colaborador das revistas Pancada, Patota e Mad, e ilustrou mais de 50 livros infantis, incluindo obras de Erico Verissimo. Mas é no simpático indiozinho Tibica, criado em 1978 para o Projeto Tiras, da Editora Abril, que Canini aponta uma de suas maiores realizações: "O Tibica foi publicado em vários jornais do país. Ele era ecológico, amava Deus e a natureza. Estou avaliando uma possibilidade de voltar a publicá-lo. Isso me faria muito bem".


"Alma gêmea"


Deus é uma presença incessante na vida do desenhista. "Falou em Deus, é comigo mesmo! Quero conhecer o que puder sobre Ele, cada vez mais. De manhã, a primeira coisa que faço é ler cinco capítulos da Bíblia", afirma Canini, que garante já ter lido o Livro Sagrado mais de 40 vezes. Evangélico - "eu sou crente mesmo, sabe?" -, ele se refere à Bíblia como uma verdadeira escola para a vida.


Mas a maior companheira do desenhista é Maria de Lourdes, com quem casou quando já tinha mais de 50 anos - foi o primeiro casamento dos dois -, e acredita ser sua "alma gêmea". A esposa também desenha, e na época em que se conheceram, criava charges para o Diário de Notícias, em Porto Alegre. Canini conta que o primeiro encontro foi marcado por um amigo que eles tinham em comum, responsável por alertar o marmanjo sobre a admiração que "a Lourdinha" tinha por seus desenhos. Assim, a admiração foi aumentando mutuamente, e hoje, os dois são companheiros desde a sessão de filmes na TV paga até a compra de verduras na feira, em Pelotas - moram lá há 11 anos. No dia 14 de outubro de 2005, Canini foi condecorado pela Câmara de Vereadores da cidade com o título de Cidadão Pelotense.


Fã de Elvis Presley, música evangélica e italiana, o que ele gosta mesmo é de sentir a paz na rotina, seja através da preguiça - a qual ele julga como seu maior defeito -, seja através da simplicidade - segundo ele, sua característica mais presente: "Na Bíblia, diz que o ideal para nós é não termos muito além nem aquém do que precisamos para viver". E é nessa filosofia que Canini desenha sua vida, sempre com um sorriso no rosto, partindo de traços simples e divertidos.

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