Por que você escreve, escritor?

Este texto, como o da semana retrasada (O manual prático do escritor), faz parte de um livro chamado Como pregar sombras ? Reflexões sobre …

Este texto, como o da semana retrasada ( O manual prático do escritor ), faz parte de um livro chamado Como pregar sombras - Reflexões sobre a aventura de ler e escrever. Como no Brasil isso leva jeito de ficção científica, o livro, que me custou duas décadas de pesquisa e escrita, continua inédito.
A pergunta, como disse meu amigo Mário Goulart, é boa. A resposta é que são elas.
Acho que cada escritor tem dezenas de respostas, todas corretas e todas parciais. Se um tem uma resposta apenas, ou ele está de sacanagem ou deve ser um imbecil chapado, por mais engenhosa que ela seja. Há muitos escritores que fazem uma piadinha e caem fora, como Manuel Vásquez Montalbán. Ele disse, provavelmente citando alguém, que escrevia pra ter um metro e oitenta e olhos azuis. Esta pergunta é complicada e parece deixar o buraco da fechadura livre a todo olho bisbilhoteiro. Os escritores em geral são tipos capazes de contar as coisas mais escabrosas sobre si mesmos, ainda se sentindo o máximo por isso, mas sabem ou pressentem que há segredos em que é melhor não tocar, como o nome de Deus. Depois do nome de Deus, tudo pode perder a graça, tudo pode parar de funcionar. É isso mesmo, a gente pode perder a tesão.
Penso que a pergunta tem várias respostas neste livro, de modo indireto, talvez o melhor dos modos. Mas não custa a gente fazer a pergunta de modo direto e dar respostas que não têm a intenção de ser respostas, que é pros candidatos a escritor não se acostumarem mal.
oOo José Saramago escrevia sempre das 17h às 21h: "Escrevo porque já almocei e janto porque já escrevi". O processo criativo do Saramago se chama digestão, se entendi direito. É uma das piores piadas de português que me contaram.
oOo Orhan Pamuk: "Escrevo porque desejo escapar do mau presságio de que há um lugar aonde eu devo ir, mas aonde - como num sonho - não posso chegar por completo. Escrevo porque nunca consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz".
oOo Roniwalter Jatobá: "Escrever é como se tivesse um sonho e, depois, uma grande angústia que levasse você a se livrar dele".
oOo Passei o dia pensando nisso: por que é mesmo que escrevo? À noite, sonhei que corria pelas ruas com uma espécie de máscara que cobria o corpo todo e que brilhava no escuro. A maioria das pessoas se assustava, achando que eu era um monstro radioativo, mas umas riam como quem ri de uma criança que quer nos assustar fantasiada de monstro radioativo.
oOo Quando tinha onze anos, ao acabar de ler Robinson Crusoé, senti: preciso escrever uma aventura tão boa como esta. Não lembro bem, mas aposto que eu me confundia com o herói da história, que era necessariamente corajoso e bonito como eu não era. Escrever assim é uma forma de sonhar impunemente, por supuesto. Não lembro em que momento passei a ser também o bandido, quer dizer, a esperar que os personagens fossem a proverbial mão de gato com que se tira as castanhas do fogo. Não lembro ainda em que momento heróis e bandidos deixaram de ser heróis e bandidos pra ser qualquer pessoa, vivendo por conta própria. Isso me parece interessante, começar a escrever pra combater a realidade - ou nossa falta de jeito com ela - com um sonho e acabar num sonho que tem sua realidade, uma realidade um tanto diferente da outra, mas que a revela e a enriquece. Em qualquer outra batalha isso não parece possível. Imagina um pirata que foge mas a fuga é a abordagem do navio inimigo.
oOo João Antônio dizia, se lembro direito: "Escrever é ir à forra". Isso parece coisa de polemista, não?
oOo Jamil Snege: "Assim como existem pernas mecânicas, os dentes postiços, os olhos de vidro, as obras que os artistas produzem têm o mesmo objetivo - torná-los menos incompletos perante o mundo".
oOo Perguntaram a Edmund Hilary, primeiro alpinista a subir e descer o Everest, por que os homens escalam montanhas. A resposta foi lacônica:
- Porque elas estão lá.
Dá pra dizer que se escreve porque os livros não estão lá. Se escreve para que estejam.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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