Um rio de lembranças

“No porta-malas do meu automóvel Levo um anjo escondido…" (Mario Quintana) *** Era uma pequena emoção na rotina da redação, passar pela mesa do …

CCMQ"No porta-malas do meu automóvel

Levo um anjo escondido?"

(Mario Quintana)

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Era uma pequena emoção na rotina da redação, passar pela mesa do poeta e ver se ele havia esquecido algum rascunho com versos, entre os papéis espalhados sobre a mesa. Eu nunca tive sorte, mas um colega, novato como eu, acertou na loteria. Ele guardaria como um tesouro a folha de papel amarfanhado, com uma quadrinha rabiscada a esferográfica:
"Três amores? Quem me deu

Tão estranha sorte assim?

Três amores, tenho-os eu

E nenhum me tem a mim!."

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Voltar àquela sala de redação, décadas depois, foi como ressuscitar velhas emoções e experiências. Algumas mais venturosas, outras um tanto doloridas. Subi as escadas, caminhei entre as velhas mesas. Aqui e ali, remanescentes de outros tempos me saudavam. Faltavam muitos, deveriam ter tomado outros rumos.
Já não lembrava o nome de todos, mas a magia dos velhos tempos estava lá. Nas fotos amareladas nas paredes, nos lentos ventiladores de teto e nas poucas máquinas Underwood e Royal, ainda funcionando. Alcancei uma janela aberta (seria ali que ficava minha antiga mesa?) e apoiei-me na sacada. Exatamente onde nos debruçávamos, quando algum acontecimento agitava o centro do mundo - a Rua da Praia.
Naqueles dias, a Praça da Alfândega funcionava como tambor de ressonância da cidade. Ali, jornalistas se encontravam nas calçadas de pedras portuguesas, conversando, entrando e saindo dos cafés. Os mais assíduos eram os redatores do Suplemento Literário, que era publicado aos sábados. Um colorido grupo de intelectuais, de escritores, colunistas e poetas, incluindo o mais festejado - e o mais retraído -, Mario Quintana. Ele se postava em um dos bancos da praça, fumando seu interminável cigarro, antes de voltar à redação e terminar de escrever seu Caderno H.

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Arrisquei uma conversa com os colegas que ainda continuavam na profissão, procurando pelo encantamento que animara minha geração de jornalista. Logo percebi que a realidade era outra e que os velhos sonhos deviam ter ficado em algum lugar do caminho. Devia ser o único com saudade dos velhos tempos, ao mesmo tempo em que percebia que os ex-companheiros eram completos desconhecidos. Então, em um acordo silencioso, nossas conversas se resumiam na troca de poucas palavras:
"- Bons tempos aqueles?"

Ou com um rasgo de nostalgia:

"- Nós éramos felizes e não sabíamos?"
Voltando pelas calçadas de pedras portuguesas, que tantas vezes percorrera em minhas idas-e-vindas, me descobri recitando para mim mesmo os versos do poeta:
 "Em que mundo vim parar,

Que nada reconheço?"

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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