As mortes de Ed Mort
Por Lourenço Cazarré, para o Coletiva.net

Mort. Ed Mort. Meu nome estava no atestado de óbito. Portanto, eu estava morto. Mas senti uma ponta de esperança quando li o nome do Legista: Palhares. Se tinha errado na altura da namorada do PC, devia estar enganado a meu respeito. Talvez eu estivesse vivo.
Diante de mim, havia uma porta larga. Lá de dentro vinha som de festa. Mais que isso, de farra. Bati.
- Quem é você? - perguntou um sujeito vermelhusco, orelhas pontudas.
- A coisa aí dentro está quente. Ou é baile funk ou é o inferno.
- Presumiu certo, espertinho - disse o indivíduo e arrotou enxofre.
- Tente um vinho de safra melhor - recomendei.
- Nome, profissão, nacionalidade? - quis ele saber.
- Mort - respondi. - Ed Mort, detetive brasileiro.
- Detetive brasileiro? Gozação não, suma!
Ameaçador, mostrou-me um garfo gigante. Embora macaco velho, sempre me surpreendo com a truculenta criatividade dos leões-de-chácara. Saí de banda.
A meia quadra dali havia outra porta. Batiam palmas e pulavam lá dentro, ao som do CD do Padre Marcelo. Apertei a campainha. Um barbudo grisalho me atendeu.
-Nome, profissão, nacionalidade?
- Ed Mort, detetive brasileiro.
- Brasileiro? - espantou-se. Certamente não apareciam muitos conterrâneos por lá. E, irritado, acrescentou: - Volte à terra para pagar seus pecados!
- Não pago nada, nunca - falei grosso. Tenho o coração mole, mas gosto de bancar o durão. - Não pago nem promessa pro Negrinho do Pastoreio. Além disso, Badan disse que estou morto.
O velho riu.
- Seu atestado foi assinado por outro Palhares. Palhares, o Canalha.
- O do Nelson Rodrigues?
- Aquele mesmo!
E, sem mais, bateu a porta na minha cara.
De repente, caí no vazio. Girei, girei até aterrissar num gramado estranho, ladeado por edifícios verdes que lembravam caixas de fósforo. Ou aquilo era um gigantesco campo de futebol ou era a Esplanada dos Ministérios.
Olhei para o lado e vi uma mulher. Ela era duas. Quero dizer, talvez eu estivesse estrábico. De combinação preta, máscara e chicotinho, ela fez uma voltinha rebolando. Senti falta de ar.
Não sabia que tinham erguido um monumento aos glúteos no gramado diante do Congresso. Um monumento perfeito que dançava e falava.
- Cuecão, o que você está fazendo aqui? - perguntou ela.
Olhei para os lados. Não havia ninguém pela volta.
- Você está falando comigo, baby?
Ela demorou a responder, certamente impressionada com a minha argúcia. Devagarinho, jeitosa, com a mão esquerda abriu os botões da minha camisa e passou uma coisa gosmenta e quente nos pelos do meu peito. Estava com más intenções. Mas as minhas eram piores. Achei que ela fosse me derrubar ali mesmo na grama.
- Claro, babaca! - disse ela e me bateu com o chicotinho numa região particularmente sensível. Juntei os joelhos, vi estrelas. - O que você faz na vida?
- Desvendo crimes - bufei. - Mas também vendo planos de saúde quando o bicho pega.
Tentei botar tédio, muito tédio na minha voz, mas é difícil fazer isso quando se está ajoelhado e com uma dor danada na junção das virilhas.
- Quero que você investigue o mistério do Fórum Trabalhista de São Paulo - disse ela, melosa.
A mão dela moveu-se, quentinha, por dentro da minha camisa. Achei que ela ia descer até a parte dolorida, mas não. Ela parou sobre a geleia, que já estava fria.
- Vou pensar no seu caso - respondi, enfastiado.
Não devia ter dito aquilo. Pelo menos, não naquele tom de descaso. A mão dela puxou com força a geleia, que nada mais era do que cera depilatória. Doeu uma barbaridade.
- Topo - gemi. - Mas quanto levo nisso?
- Um apartamento em Miami, mais cota livre no freeshop do Chuí, na volta.
- O que houve no tal Fórum?
- Sumiu um dinheirão. Cem milhões de dólares.
- Não seriam cem mil dólares?
- Cem mil dólares no Brasil é troco, otário.
Eu já estava pronto para fechar com ela quando parou diante de nós um senhor. Calvo, fornido de carnes, sessentão. Parecia indignado.
- Quem é esse cara? - a moça perguntou.
Mirei o sujeito de alto a baixo. Tinha achatadas as pontas dos dedos. Devia ser digitador profissional. Por baixo da camisa branca, vestia uma camiseta de futebol, vermelha com letras brancas. Talvez torcesse para o Bangu ou por um time ainda mais vagabundo.
- Tu és um plágio - disse ele.
O esforço por fazer um discurso tão longo o deixou ofegante.
Resolvi testar a resistência do material com que havia sido construído o queixo dele. Mas, quando preparava o murro, ele cravou algo no meu peito.
Olhei para baixo e vi que era uma Bic. Estava enterrada no meu coração. Felizmente, ele havia acertado num furinho de brasa de cigarro. Talvez desse para remendar a camisa depois. Uma mancha crescia rapidamente.
Logo senti que minhas forças estavam me abandonando. Aliás, elas debandam toda vez que reduzo compulsoriamente a ingestão de calorias.
Para resumir, eu estava morrendo pela segunda vez naquele dia.
Eu não queria morrer sem uma frase forte. Algo que soasse como um epitáfio. Uma frase para provar que, mesmo ao deixar este vale de lágrimas, eu continuava a ser o perspicaz Mort, Ed Mort.
Aí eu disse:
- Ou a carga da Bic era vermelha ou isso é sangue.
(*) Crônica publicada em Zero Hora, na edição de 17 de julho de 1999.
Esclarecimentos
Em meados de 1999, a editoria de Cultura da Zero Hora convidou ficcionistas a escreverem sobre os vinte personagens mais conhecidos da literatura gaúcha. Três deles eram de Érico Veríssimo: Capitão Rodrigo, Ana Terra e Bibiana. Dois de seu filho Luís Fernando: O analista de Bagé e Ed Mort. Como se vê, a família Veríssimo açambarcou 25 por cento da melhor produção literária do Continente de São Pedro. Coube-me escrever sobre o Ed Mort.
Ao reler essa crônica (que nem sei se merece releitura ou, menos ainda, uma nova publicação), mais de vinte e cinco anos depois, devo dar uns esclarecimentos.
O médico Badan Palhares, um dos maiores legistas brasileiros, trabalhou num crime célebre dos meados dos 1990: a misteriosa morte de PC Farias e de sua namorada, Suzana Marcolino. Na época houve uma acesa polêmica sobre a altura de Suzana. Segundo o laudo pericial, ela teria 1m67. Segundo uma irmã, ela media 1m57.
O caso do Fórum Trabalhista foi um dos maiores escândalos de corrupção dos noventa. Foi, digamos, o abre-alas para o que viria depois, multiplicado.
A garota escultural (sempre havia loiras estonteantes nas histórias do Ed) foi calcada numa musa televisiva da época, a Tiazinha.
Ed Mort é o meu personagem favorito de LFV, embora eu também considere genial o analista de Bagé.
Luís Fernando Veríssimo formava com Nelson Rodrigues a nossa melhor dupla de cronistas de humor. Nelson era barroco, burlesco, delirante. O texto de Luís Fernando é seco, direto, cortante.
Luís Fernando criou o seu Ed Mort com base nas suas leituras de Dashiell Hammett e (principalmente) Raymond Chandler, autores que também admiro. Aliás, o apreço que tenho por esses dois mestres me levou a criar o detetive Dax Chamber (novaiorquino, que fala português com sotaque de Uruguaiana), um dos protagonistas de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar (Bertrand, 2009), republicado há pouco, em fascículos, aqui, no Pelotas 13 Horas.
Conheci (?) Luís Fernando lá por 1974/75, quando ele foi dar uma palestra no Curso de Jornalismo da Católica. Depois, ele foi à churrascaria do Pelotas. Como sabíamos que ele não era de espichar conversa - nós, os jovens e deslumbrados universitários - ficamos na nossa mesa, observando de longe o nosso cronista preferido jantar, em silêncio, com a esposa.