A Urgência Silenciosa
Por Fernando Puhlmann

"A AIDS não tem preconceito. Você também não deve ter."
Ministério da Saúde
Neste final de semana, assisti à minissérie "Máscaras de Oxigênio Não Cairão Automaticamente", disponível na HBO Max. Baseada em fatos reais, a trama se passa no Rio de Janeiro dos anos 1980 e acompanha Nando (Johnny Massaro - GIGANTE), um comissário de bordo secretamente gay que, ao ser diagnosticado com HIV, se vê diante da escassez de tratamento no país. Em um ato de coragem, ele se une a outros comissários para contrabandear AZT (único medicamento disponível na época) dos Estados Unidos para salvar vidas no Brasil. Ativistas e médicos também colaboram nessa rede clandestina de solidariedade.
A série terminou, mas a reflexão não. O que me atinge mais fundo é o fato de que a urgência daquela época retornou, só que de forma camuflada, mais silenciosa. Ela não vem com o mesmo pavor de morte iminente de ante, mas com a letargia de quem pensa que o problema acabou. E, aqui, em Porto Alegre, isso é um perigo real.
Precisamos olhar para os números que a Capital insiste em nos mostrar. Em 2024, registramos 2.776 novos casos de HIV/Aids em Porto Alegre, ligeiramente acima dos 2.747 casos registrados em 2023. Nossa cidade tem uma das maiores taxas de detecção do país, um sinal claro de que o vírus circula intensamente e que a epidemia está longe do controle.
Tu podes pensar: "Mas hoje existe tratamento". E sim, tu tens razão. Os antirretrovirais são a nossa grande vitória, o fruto daquela luta de décadas. Eles garantem que tu vivas com o HIV sem que ele evolua para a Aids, e permitem uma vida praticamente normal. Mas, os efeitos colaterais físicos dos medicamentos existem: danos renais, hepáticos, problemas cardiovasculares, neurológicos. Viver com HIV exige disciplina, adesão rigorosa ao tratamento e a convivência diária com um estigma que ainda machuca a alma.
Além disso, não podemos esquecer: o tratamento chegou tarde, muito tarde, e isso não foi acidente. O preconceito - institucional, social, religioso - impediu que os medicamentos chegassem antes, condenando milhares à morte. Muitos por suicídio. E, infelizmente, o preconceito continua sendo o principal efeito colateral do HIV que mata de forma silenciosa, corroendo vidas com discriminação, exclusão e dor emocional.
A única defesa absoluta, é a prevenção. É o preservativo. É a testagem regular. É a PrEP. É a responsabilidade afetiva. Não podemos deixar que a juventude (que não viveu o caos) e a população em geral se sintam invulneráveis. O vírus não escolhe.
E neste momento de renovada urgência, meu pensamento volta ao passado.
Um agradecimento especial aos pioneiros dessa luta no final dos anos 80. Aos ativistas corajosos, aos profissionais de saúde que deram a cara a tapa, aos indivíduos que, na dor mais profunda, criaram a rede de apoio que salvou um país inteiro. Vocês fizeram o que parecia impossível: garantiram que hoje tivéssemos a medicação e o SUS. Que essa garra e essa memória nos inspirem a combater a indiferença de agora.
Mas não nos enganemos: a luta ainda está longe do fim. Autoridades que se calam, campanhas que não chegam, e a persistência do preconceito continuam a matar silenciosamente. Cada descuido, cada omissão, cada olhar de indiferença é um risco real para vidas que poderiam ser salvas. A luta contra a Aids não é só dos soropositivos, é tua, é minha, é de todos.
Não podemos mais permitir que a epidemia volte a dizimar, afinal as máscaras de oxigênio nunca cairão de forma automática se não forem programadas para isso. Não podemos aceitar que o silêncio mate enquanto se prefere o conforto da negligência. É hora de agir. É hora de falar. É hora de viver a urgência que o passado nos ensinou - antes que seja tarde de novo