Amargo sabor

Por José Antonio Vieira da Cunha

Fossem Baco e Dionísio seres humanos e não as divindades adoradas por romanos e gregos, o que diriam dos vinhos e espumantes gaúchos ao saberem que são produzidos à custa de um degradado esforço, misto de escravidão com exploração desumana?

Difícil entender como empresas da Serra gaúcha, saudadas e admiradas por sua história e produtos, tenham sido capazes de ter tolerado a forma como trabalhadores foram transformados em semiescravos para colher saborosos cachos de uvas que se transformariam nos vinhos e espumantes tão queridos pelos admiradores destas bebidas.

Situando: as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton contrataram um prestador de serviços, que arrebanhou trabalhadores para a colheita da safra da uva em Bento Gonçalves. Vieram do Nordeste e foram tratados de forma inaceitável, submetidos a um regime de trabalho incompatível com os usos e costumes do século 21. A realidade mostrou que as três contratantes falharam miseravelmente ao negociar com um terceiro sem, aparentemente, investigar antes e acompanhar durante o que estava sendo entregue.

Quem diria que a Aurora seria capaz de agir assim, ela que se apresenta tendo a sustentabilidade na mira de um futuro melhor e faz questão de certificar as práticas de gestão e fabricação, seguindo normas como a velha e boa ISO 9001 e uma certa SSC 22000, programa internacional de certificação de práticas de segurança na produção de alimentos?

Quem diria que a Garibaldi seria capaz de agir assim, ela que em seus princípios promete um tratamento humano e afirma ser "socialmente justa, ecologicamente correta, economicamente viável e culturalmente diversa", tudo para gerar resultados "respeitando aspectos de agroecologia e governança"?

Quem diria que a Salton seria capaz de agir assim, ela que exalta seus relacionamentos com stakeholders em um processo de sustentabilidade fundamentado nos pilares da produção sustentável, relacionamentos prósperos e governança ESG?

ESG é conceito que embute políticas saudáveis em relação a meio-ambiente, responsabilidade social e governança. Pois bem, não é bem isso o que se viu no episódio, e na verdade as três empresas podem ser identificadas a partir de agora pela sigla ASG, de Aurora, Salton e Garibaldi, o trio que fecha os olhos para o respeito e ignora seus princípios para atingir os resultados que levem a um "futuro próspero".

Afinal, é o que se constata do episódio agora desnudado graças a uma ação do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. Se, de fato, como apregoam, as empresas da Serra cuidam do relacionamento com clientes e colaboradores, foram na verdade lenientes e cúmplices do fato, pois é inconcebível que os responsáveis - quem são, mesmo? - pela gestão das três ignorassem a forma como duas centenas de trabalhadores eram tratados. Dormiam amontados em ambiente insalubre, recebiam comida em condições inadequadas de higiene, eram explorados comercialmente - a ponto de, em vez de salário, ficarem devendo dinheiro no fim do mês para a bodega da esquina.

Com tudo isso rolando, os gestores das duas cooperativas e da empresa familiar desconheciam? Por favor, eis aí uma postura inadmissível e não há argumento que justifique terem contemporizado com esta situação deprimente.

Não nos esqueceremos disso a cada vez que abrirmos garrafas de vinho e de espumante. 

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem quatro netos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários