Boa noite, meu amor!
Por Fernando Puhlmann

"Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade."
Mulheres de Atenas - Chico Buarque
Ele beija a tela. Diz "boa noite, meu amor" para uma mulher que não existe. Ela sorri, programada, dócil, sem passado, sem TPM, sem opinião, sem vontades próprias. Uma inteligência artificial feminina que existe apenas para reafirmar tudo o que ele quer ouvir.
Não, não é ficção científica. É segunda-feira à noite no quarto de um cara comum. E tem muitos fazendo o mesmo.
Os aplicativos de "namoradas de IA", como Replika ou EVA AI, já acumulam milhões de usuários pelo mundo todo e a maioria esmagadora, claro, é de homens heterossexuais. Neles, escolhem o rosto, a voz, o temperamento da parceira perfeita. E pronto: ela está ali, te amando incondicionalmente. Ou, melhor dizendo, te obedecendo incondicionalmente.
Há algo profundamente simbólico (e perigoso) nisso tudo.
Por trás dessa escolha aparentemente tecnológica, habita uma masculinidade extremamente frágil, que não sabe lidar com frustração, com confronto, com a imprevisibilidade dos sentimentos reais. Uma masculinidade que se sente ameaçada por qualquer mulher que diga "não", "não quero", "não concordo". A IA, nesse contexto, não é inovação. É fuga. É o abrigo perfeito para o homem que deseja uma mulher que jamais o desafie.
Pesquisadores de Stanford já alertaram que esse tipo de vínculo artificial pode estar formando uma geração com baixa tolerância ao afeto real e alto apego à fantasia de controle absoluto. Quando o amor vira interface, o afeto vira algoritmo... e o outro vira objeto.
Mas o problema não para aí.
Essa substituição do real pelo simulacro não só desumaniza as mulheres, como também confunde os próprios homens. Quando o teu cérebro é treinado para acreditar que afeto, sexo e vínculo emocional vêm por comando de voz, o retorno ao mundo real pode te tornar hostil. E muitas vezes, violento. A mulher de verdade, com vontades reais, se transforma num erro de sistema e não estamos mais programados para lidar com erros.
E assim, o perigo deixa de ser só íntimo e vira social. Perde-se a noção do limite entre ficção e realidade, especialmente entre os mais jovens, que estão crescendo entre assistentes virtuais e algoritmos carinhosos que jamais dizem "não hoje", "não estou afim", "não gosto", "não quero". A frustração vira raiva. E a raiva, a gente sabe, na maioria das vezes, vira misoginia.
Porque para muitos desses homens, o maior pesadelo não é a solidão. É conviver com uma mulher que não é sua propriedade.
Boa noite, masculinidade frágil. Vai procurar terapia.