Burocratizar a solidariedade

Por Renato Dornelles

Assim como já ocorre em São Paulo, em Porto Alegre um projeto que tramita na Câmara Municipal pode dificultar em muito a doação de alimentos para pessoas em situação de rua. Em alguns casos, até inviabilizar.

Na Capital paulista, o projeto, que se encontra suspenso devido à repercussão negativa, estabelece uma série de requisitos para a distribuição de alimentos a pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social, como limpeza do local da doação, disponibilização de mesas, cadeiras e utensílios, autorização prévia de órgãos municipais, cadastro de voluntários e beneficiários na Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e multas de R$ 17,68 mil em caso de descumprimento. 

A repercussão negativa do projeto na capital paulista, que provocou sua suspensão e até a ameaça de retirada de parte do vereador-autor não impediu que na Câmara de Porto Alegre fosse criado projeto semelhante. Na versão gaúcha, o projeto estabelece que Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades assistenciais e pessoas físicas voluntárias realizem cadastro junto a órgão municipal, com documentação que comprove a atuação, cadastro de locais, datas e horários planejados para a distribuição (que, de acordo com a proposta, serão definidos previamente pelo Município), e cumprimento de medidas de segurança alimentar.

Consciente ou inconscientemente, ambos os projetos burocratizam e muito a solidariedade e a ajuda humanitária, que são alguns dos gestos mais nobres dos seres humanos. Mais do que isso, desprezam a urgência da fome.

Se as propostas forem aprovadas, o município passa a controlar a ajuda de terceiros a pessoas em vulnerabilidade. Ou seja, em vez de criar suas próprias (ou novas ações), o Poder Público Municipal passa a moderar, limitar e dificultar as ações de solidárias de ONGs e cidadãos e cidadãs voluntários.

As medidas certamente vão provocar uma redução - se não uma extinção - no número de doares e possibilitarão ao município um maior controle das áreas por onde as pessoas em situação de rua poderão circular. Se o interesse realmente é proteger essas pessoas, por que em vez de dificultar a ação de doadores não se propõe políticas públicas que reduzam a vulnerabilidade delas?

Autor
Jornalista, escritor, roteirista, produtor, sócio-diretor da editora/produtora Falange Produções, é formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (1986), com especialização em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2021). No Jornalismo, durante 33 anos atuou como repórter, editor e colunista, tendo recebido cerca de 40 prêmios. No Audiovisual, nos últimos 10 anos atuou em funções de codireção, roteiro e produção. Codirigiu e roteirizou os premiados documentários em longa-metragem 'Central - O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil' e 'Olha Pra Elas', e as séries de TV documentais 'Retratos do Cárcere' e 'Violadas e Segregadas'. Na Literatura, é autor dos livros 'Falange Gaúcha', 'A Cor da Esperança' e, em parceria com Tatiana Sager, 'Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas'. E-mail para contato: [email protected]

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