Cala Boca!

Por Fernando Puhlmann

"Quando o Estado desconfia primeiro da vítima,

ele se torna cúmplice do agressor."

Djamila Ribeiro

Há momentos na história em que avanços civilizatórios, conquistados com dor, luta e coragem, parecem ser tratados como descartáveis. O projeto de lei apresentado pela deputada federal Julia Zanatta, que propõe punir com rigor mulheres que fizerem acusações "falsas" de violência doméstica, é exatamente isso: um retrocesso travestido de modernização jurídica. É um perigo real para todas as vítimas de agressão, especialmente as psicológicas, as silenciosas, as que não deixam marcas na pele, mas deixam cicatrizes profundas na vida.

A pergunta central é simples e devastadora: como exigir que uma mulher denuncie seu agressor se, antes mesmo de ser ouvida, já paira sobre ela a ameaça de virar ré, caso não consiga "provar" o que sofreu?

Provar o quê? Como? De que maneira uma mulher que vive violência psicológica, manipulação, humilhação, ameaças veladas, chantagem emocional, vigilância constante, consegue transformar sua dor em evidência jurídica? Como responsabilizá-la criminalmente por não conseguir documentar aquilo que aconteceu entre quatro paredes, muitas vezes durante anos, sob medo, isolamento e controle?

Isso não é proteger ninguém. Isso é calar.

Esse tipo de proposta inverte o ônus, o sentido e a alma da Lei Maria da Penha, considerada mundialmente uma das legislações mais avançadas de combate à violência doméstica. Ela existe justamente porque o Estado reconhece que a mulher, em situação de violência, é a parte vulnerável - social, psicológica e economicamente. Transformar essa mulher em potencial criminosa é desmontar a lógica da proteção e reinstalar o velho paradigma da suspeita, aquele que dizia: "tem certeza? ", "não exagera", "deve ter provocado", "não deve ser tão grave assim".

É o retorno à era em que a mulher pensava mil vezes antes de pedir ajuda. É institucionalizar o medo.

E não, não se trata de defender denúncias levianas. O ordenamento jurídico já prevê punições para isso. O que está em jogo não é a lei, mas a mensagem. Ao dar destaque e prioridade ao risco de falsas denúncias (que estudos sérios apontam ser minoritárias) o Estado passa a insinuar que o problema está nas mulheres, não nos agressores.

A consequência?

Muitas vítimas deixarão de denunciar. Outras tentarão, mas desistirão no meio do caminho. E várias continuarão vivendo em silêncio, acreditando que o risco de serem desacreditadas é maior do que o risco de continuarem sendo agredidas.

A violência doméstica no Brasil não precisa de mais obstáculos. Precisa de acolhimento, estrutura, políticas públicas, formação profissional, sistema que funcione. A proposta apresentada vai na direção contrária: desestimula denúncias, enfraquece a confiança no Estado e reforça o ciclo de abuso.

Transformar vítimas em possíveis rés não é justiça. É crueldade institucionalizada.

E, principalmente, é uma ordem traumática ouvida por muitas vítimas: Cala Boca!

Autor
Sócio-cofundador da Cuentos y Circo, Puhlmann é um dos principais especialistas em YouTube do país, com um olhar focado em possibilidades de faturamento na plataforma e uma larga experiência em relacionamento com grandes marcas do mercado de entretenimento. Além de diretor de Novos Negócios da CyC, tem também no seu currículo vários canais no país, entre eles o do escritor Augusto Cury, do Gov Eduardo Leite, Natália Beauty e do Grêmio FBPA, sempre atuando como responsável pela estratégia de crescimento orgânico dos canais. Já realizou palestras sobre a nova Comunicação juntamente com diretores do YouTube Brasil como a abertura do 28º SET Universitário da Famecos-PUCRS, o YouPIX/SP e o Workshop YouTube Gaming Porto Alegre. Desde 2013, Puhlmann ministra cursos, seminários e oficinas sobre YouTube, tendo mentorado mais de 30 canais nos últimos anos.

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