Capítulo 97 - O drama Herzog
Por Vieira da Cunha

Em outubro de 1977 o Coojornal publicou uma reportagem sobre a mudança editorial na Folha de S.Paulo, ocorrida no mês anterior. Era daquelas matérias que só jornais da imprensa alternativa, como o nosso, ousavam publicar. No caso, esquadrinhar os bastidores das mudanças que expurgaram da redação três elementos chave, cada um mais talentoso que o outro: Cláudio Abramo, Boris Casoy e Tarso de Castro. Em certo momento, ao detalhar a nova orientação, um parágrafo incendiário registrava:
"A história deve começar nos fins de 1975, quando Frias resolveu fazer de seu jornal, até então sem expressão nacional, 'um jornal melhor do que o Estadão'. A cobertura, considerada 'muito digna' do assassinato do jornalista Wladimir Herzog, representou o marco da abertura."
Vladimir Herzog havia morrido em 25 de outubro de 1975, quando era diretor de Jornalismo da TV Cultura em São Paulo. Foi preso pelo regime militar por sua atuação política como militante do Partido Comunista Brasileiro. Preso, foi torturado. Torturado, foi assassinado, tudo isso nas dependências criminosas do DOI-CODI, no II Exército. Até então, no entanto, mesmo passados dois anos, toda a mídia, por censura ou temor, tratava o caso como morte, escudada na versão oficial, segundo a qual o jornalista teria se suicidado na cela com o próprio cinto.
Agora, vai aqui a revelação de um fato conhecido por menos de meia dúzia de pessoas, três ou quatro delas talvez nem se recordem mais, tanto tempo se passou. Logo que o jornal circulou, o que ocorria simultaneamente em todas as principais capitais do país, nosso colega Jorge Escosteguy ligou de São Paulo, e em sua tradicional forma rude e sincera de se comunicar, como todo bom santanense, esbravejou:
- Vieira, vocês estão loucos? Querem ser presos? O Exército vai capturar vocês quando virem esta notícia dizendo que o Vladimir foi assassinado.
Naquela época o jornal era impresso na Corag, a empresa estatal que imprimia todos os documentos e publicações para o governo do Estado e começara a incomodar o setor gráfico quando passou a prestar serviços também para empresas privadas. Especulamos que até a própria direção da companhia poderia enfrentar problemas com o fato. Da discussão entre nós veio a luz: decidimos reimprimir dez exemplares do jornal, custasse o que custasse, substituindo "assassinato" por "morte". Ficariam guardados a sete chaves em minha sala; caso a repressão batesse à porta da cooperativa em função da notícia, exibiríamos os exemplares corrigidos com a explicação de que mencionar Herzog como tendo sido assassinado havia sido um engano, identificado na impressão dos primeiros exemplares e logo corrigido. A prova estaria ali, em um daqueles raros exemplares que eu teria para exibir. Não há como saber se a desculpa colaria, pois a edição passou batida pelos escaninhos dos censores.
Sem saber do desdobramento do episódio, o jornalista Geraldo Hasse, então editor de geral da Veja, enviou em carta a mesma observação. Atento leitor, colaborador, incentivador e amigo de todos nós, Geraldo enviava periodicamente análises do jornal e sugestões de pautas e entrevistas. Em carta em 20 de outubro de 77, junto com o recibo de uma assinatura que vendeu e o elogio "Gostoso o Coojornal 21", observou que viu muitos problemas de edição, "por falta de cuidado, excesso de pressa, sei lá". E deu como exemplo a mesma matéria sobre a FSP:
- Foi um descuido perigoso dizer que Herzog foi assassinado. Não que seja mentira, mas por que abrir uma brecha para que nos chamem de provocadores etc. e tal?
Fechamos a brecha, Geraldo. Meses depois, com a ditadura escancarada e a caminho da desmoralização, o Coojornal voltaria a atacar com mais clareza fatos como este. E a mostrar que o episódio com Vladimir Herzog teve papel relevante na luta contra o regime. O laudo oficial mostraria que seria impossível suicidar-se com um cinto, pois os macacões dos prisioneiros do DOI-CODI não tinham este acessório, nem os sapatos, cordões. As fotos publicadas mostram seus joelhos dobrados com os pés tocando os chão, evidência que torna impossível o ato de suicídio. E o laudo ainda revelaria que havia duas marcas em seu pescoço, sinais típicos de estrangulamento.