Coopítulo 52 - Fehlberg, um amigo

Por José Antonio Vieira da Cunha

Carlos Fehlberg marcou a história do jornalismo brasileiro, como se viu pelos registros em redes e nos jornais desta segunda-feira. Não tive muitos momentos em sua companhia, ele dirigindo a redação da Zero Hora, eu atuando na editoria da Folha da Manhã e depois no Coojornal, tudo isso no século passado. Era uma relação cordial e certa vez em Florianópolis, no aniversário de uma amiga comum, conversamos durante uma tarde inteira. Mas sua figura ficou marcada de forma permanente em minha gaveta de reconhecimentos pela participação importante que acabou tendo no principal e desgastante embate que a Cooperativa dos Jornalistas travou com a Polícia Federal e a censura, a publicação da polêmica e reveladora reportagem sobre os políticos cassados pelo regime militar.

Como narrado aqui neste espaço com mais detalhes, Geisel iniciava em 1977 os primeiros movimentos do que prometia ser uma "lenta e gradual" caminhada em direção à abertura democrática, mas a repressão ainda dava as cartas e fazia ouvidos moucos para os esforços em busca de uma normalidade. O governo militar até tentava distensionar o ambiente, mas, como a história nos ensinou, em uma ditadura, quem muito manda é o guarda da esquina. Não surpreendia, portanto, que nas superintendências da PF, a despeito da vontade dos superiores, diretores e agentes seguidores da linha dura seguiam vigiando e colocando dificuldades a qualquer iniciativa de oposição ou simples crítica ao regime. 

Foi o que aconteceu com o Coojornal como vítima, quando policiais receberam a incumbência de constranger os anunciantes e clientes da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre e de seu jornal para levar um recado bem claro e nada amistoso: contratar o trabalho da Coojornal ou anunciar no seu Coojornal significavam dar apoio a um grupo de jornalistas subversivos, com ligações com comunistas e outros fantasmas bem apropriados para a época.

Em julho de 1977, o Coojornal tinha menos de dois anos quando publicou o trabalho de investigação sobre o total de políticos cassados no Brasil de abril de 64 até aquela data. Era fruto de um levantamento minucioso a ser publicado pela Extra, que encerrou suas atividades para não se submeter à censura prévia que fora decretada contra a revista. O trabalho acabou no colo do Coojornal e sua publicação surpreendeu e repercutiu em todo o país por revelar um número até então desconhecido e que o editor destacou na capa: 4.682 cidadãos tiveram seus direitos políticos cassados pelo golpe de 64.

Ainda naquele julho, agentes da Polícia Federal, com o Coojornal debaixo do braço, visitaram cada um dos anunciantes para "recomendar" que deixassem de anunciar no jornal sob pena de "dificuldades futuras". A explícita ameaça à liberdade de imprensa deu resultados e o jornal passou a sofrer um sufoco publicitário e na própria circulação, com a perda de 80% de seus anunciantes. Vale repisar o que contei outro dia: a informação sobre as visitas dos federais, sempre em dupla, foi relatada a nós por vários dos anunciantes ou representantes de suas agências de propaganda, o que nos levou a pedir uma audiência à superintendência da PF em Porto Alegre. Depois de muita insistência e adiamentos, e tendo a meu lado o presidente da ARI (Associação Riograndense de Imprensa), Alberto André, e do Sindicato dos Jornalistas, Antônio Oliveira, fomos recebidos pelo superintendente Luiz Macksen de Castro. 

A autoridade policial foi direta na resposta: os agentes visitaram os anunciantes por ordem expressa dele, Macksen de Castro, e as incursões objetivavam explicar os "pontos de vista" da PF sobre aquela publicação. Nada adiantou tentar mostrar a ele que o trabalho que se desenvolvia na Coojornal era profissional e responsável; o delegado estava convencido, e falou disso com todas as letras, de que o Coojornal tinha um posicionamento "erquerdizante e subversivo". 

Visto que não conseguiríamos remover aquela rocha repressora, a alternativa foi buscar o superior hierárquico do superintendente. Este caminho levava a Brasília e foi aberto por Merval Pereira, então presidente do Clube de Imprensa de Brasília e repórter do Globo junto ao Congresso. Rubem Ludwig, gaúcho de Lagoa Vermelha, era subchefe da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e recém-nomeado assessor de imprensa e relações públicas da Presidência da República. Era importante falar com uma figura como Ludwig, amigo e confidente do presidente Ernesto Geisel, enquanto o superintendente da Coojornal, Jorge Polydoro, executava outra missão ousada: visitar reservadamente o marechal Cordeiro de Farias, então o militar mais respeitado pela tropa, mesmo que na inatividade. Dele Polydoro ouviu que conhecia bem o trabalho que a Cooperativa dos Jornalistas estava fazendo e que não concordava com a perseguição que estava sendo feita.

De Ludwig, o Rubão, como era conhecido, ouvi manifestação semelhante. Disse, com todas as letras, que a ação desenvolvida no Rio Grande do Sul pelo superintendente Macksen não tinha seu conhecimento nem aprovação. E foi além, afirmando que tomaria providências para conter o subordinado, embora o estrago, que não era pequeno, já tivesse sido feito. Fortalecemos naquele episódio a convicção de que a pressão não era apenas pela reportagem sobre os cassados; o SNI costumava alimentar e estimular fantasmas em todas as direções, e uma destas fantasias levantava a suspeição de que os jornalistas do Coojornal tinham ligações políticas com os grupos guerrilheiros Montoneros, da Argentina, e Tupamaros, do Uruguai.

Bem, saindo da audiência satisfeito com a conversa, voltei a Porto Alegre no dia seguinte para relatar com entusiasmo aos colegas da cooperativa o resultado daquela conversa direta e espontânea com Ludwig. Mas, para desagradável surpresa, a edição daquele dia de Zero Hora trazia a versão vendida pelo Palácio do Planalto segundo a qual o presidente da Cooperativa dos Jornalistas tinha se reunido com a autoridade federal para uma visita de cortesia. No meio da tarde fui à redação do jornal e procurei pelo Fehlberg, que conhecia muito bem como funcionava o sistema em Brasília, assessor de imprensa que foi do general Médici. Ouviu com atenção e foi direto na solução: liberou uma máquina para que eu escrevesse uma nota com minha versão. Deu o limite de toques (só para lembrar, relembro tempos em que as máquinas eram mecânicas e se escrevia em laudas, geralmente com 20 linhas de 70 toques cada), recebeu o original redigido por mim e publicou-o sem trocar vírgula.

Este era Fehlberg, talentoso e respeitado repórter político, com muitos amigos que lamentam o fato de não ter deixado registrado suas memórias. Nelas talvez este fato não fosse mencionado, mas a grandeza dele o tornou inesquecível.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas passagens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem quatro netos. E-mail para contato: [email protected]

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