O mapa desfigurado da Rua dos Andradas

Por Márcia Martins

Um dia destes qualquer, ao retornar de um compromisso médico, resolvi caminhar pela Rua dos Andradas - popularmente chamada de Rua da Praia - num trajeto que não percorria há muito tempo, em função do isolamento pela Covid-19 e do afastamento de funções sindicais que sempre me levavam àquela via. No curto trecho selecionado - entre as ruas Vigário José Inácio até a General Câmara - quase não reconheci a rua pela qual tantas vezes passei. Tanta loja diferente, tanto comércio fechado, tanto estabelecimento vendendo bugigangas e um assédio de pessoas querendo entregar panfletos.

Nem que olhasse minuciosamente o mapa daquela rua, como se eu examinasse a anatomia de um corpo, como sugeriu nosso Mario Quintana no poema "O Mapa", conseguiria trazer ao meu doce andar uma lembrança da Rua da Praia em tempos anteriores. Não sou saudosista (embora pareça) e nem totalmente presa ao passado. Reconheço a necessidade de mudanças e sei que, às vezes, elas são apenas uma imposição do tempo e da sobrevivência. Mas, caminhar pelas suas esquinas hoje tão diferentes, desviar das calçadas mal cuidadas, não reconhecer quase nenhuma loja, me pareceu peregrinar por uma nova rua.

Desculpe-me poeta pela apropriação indevida e distorcida, mas senti uma dor infinita daquela rua de Porto Alegre onde jamais passarei novamente. Para entrar na Igreja do Rosário e deixar meus pensamentos se elevarem a alguém superior, que eu não sei quem é, uma vez que não sou católica, precisei pular por cima de produtos espalhados pelo chão, no meio da calçada, ou fugir de umas duas ou três ciganas que tentavam pegar minha mão (elas também diminuíram a sua frequência). Mas, compreendo que os ambulantes buscam seu sustento e que as ciganas também estão atrás de uns trocados.

Na entrada da Galeria Malcon, pela Vigário José Inácio, antigo reduto de marcas famosas e que eram objeto de desejo da juventude (agora sim começo a emitir sinais de velhice), uns quatro elementos quiserem me entregar panfletos que ofereciam a melhor comida do planeta em locais ali dentro ou nas redondezas. Recusei, com educação e, mesmo que eles não tenham entendido, apontei que não chegaria perto deles porque estavam sem máscaras. Sim, mesmo em locais abertos eu continuo sendo a louca mascarada e evito proximidades com quem já dispensou esse acessório.

O mais estranho mesmo foi ver uma loja encravada na esquina da Rua da Praia com a Uruguai que tradicionalmente vendia os tais discos de vinis, CDs, DVDs e aparelhos musicais. De longe - não me atrevi a entrar no estabelecimento - percebi que a loja agora vende eletrodomésticos pesados e portáteis e que, aliás, são esses produtos que funcionam como chamariz para atrair os clientes. Onde antes se comprava um bom DVD da Gal Costa, por exemplo, hoje pode se levar uma máquina de lavar roupas. Ou se você ali procurava o último lançamento do Erasmo, o Tremendão, porque não sair com um secador de cabelos?

Foi uma das caminhadas mais desafiadoras e nostálgicas desde que retomei pequenos hábitos pós pandemia - que ainda não acabou e por isso, por favor, sigam usando máscaras. Novamente, vou mesclar versos de Quintana (não venha puxar meus pés de noite) com pequenas adaptações. Há tanta esquina esquisita, tanta nuança de paredes, não há tanta moça bonita e nem moço bonito nesta rua que tive que andar. Espero ainda encontrar uma rua encantada, que não existiu só nos meus sonhos, mas que se assemelhe mais à antiga Rua dos Andradas. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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