Um pouco de amenidades para alegrar o feriadão da Páscoa

Por Márcia Martins

Prometi com todas as minhas forças que não escreveria a coluna sobre as trapalhadas do presidente Jair Bolsonaro e sua turma inteligente de ministros e ministras. Jurei que ficaria três meses sem pensar em nenhuma maldade (e olha que tenho cá os meus pecados) se eu conseguisse redigir o texto deste portal sem falar nos atos de discriminação, preconceito e misoginia que ocorrem todo o dia no País. E, principalmente, pedi ao sangue de Jesus que tem poder, aos orixás, ao Kardec, aos duendes e bruxas que me guiam e ao São Francisco de Assis, santinho protetor dos animais, que me iluminassem e segurassem meus dedos para que eu não teclasse nada sobre o medo, o pavor, a angústia e a vergonha de viver no Brasil desde o início de 2019.

Completamente fiel, então, às teorias, teses e promessas descritas no parágrafo acima, resolvi discorrer hoje sobre amenidades do dia a dia para alegrar um pouco o feriadão de Páscoa que se inicia na quinta-feira, 18 de abril, para os mais sortudos, ou na sexta, 19 de abril, para os menos afortunados. E imediatamente, lembrei as calçadas da Rua da Praia (que assina na certidão como Rua dos Andradas) totalmente tomadas pelos índios, índias e seus familiares vendendo cestinhos de Páscoa e com a expectativa de faturar, em dois ou três dias, ali, naquele espaço o que vendem em um mês em outros locais de exposição de seu artesanato. São cestas de todas as cores, de todos os tamanhos, de vários modelos e de preços diversos.

Numa das minhas caminhadas na Rua da Praia, na saída de uma reunião de diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS, no curto trecho compreendido entre a Rua General Câmara e a Avenida Borges de Medeiros, contei, assim por cima, sem exatidão, mais de mil cestas de Páscoa. Todas espalhadas no chão, dispostas em lonas ou panos. Mercadorias cercadas pela família indígena, os de mais idade acomodados em cadeiras e as crianças penduradas em alguma teta de onde jorra o leite que lhes alimenta, correndo em volta dos seus pais ou brincando de qualquer joguinho fácil com os amigos da barraca ao lado. Sem exagero nenhum, em cada barraca/tenda ou quiosque de venda dos índios, coabitam pelo menos cinco crianças indígenas.

E entre cestas de Páscoa, sacos transparentes estufados de palha para forrar as cestas e pacotes de chá de macela, que parecem cair do céu nesta época, que essa população de índios e seus familiares ocupam estas duas quadras da Rua da Praia e trazem, pelo menos para mim, um pouco da memória da ternura da Páscoa da minha infância. A mãe colorindo os ovos de galinha com cascas de cebolas e recheando depois com amendoim doce crocante, conhecido também como cricri ou carapinha. Porque os tempos eram de finanças controladas e era complicado presentear quatro filhos com ovos de chocolate.  E alguns anos mais tarde, esperar, ansiosa, a cesta de Páscoa que cada um dos filhos da Dona Mirthô ganhava de presente de suas respectivas madrinhas.

A maratona de esconder as cestas de Páscoa, de dizer que o coelhinho pulou a janela para deixar os ovos de chocolates, imitar com talco ou farinha as pegadas do coelho para ludibriar as crianças é um cenário de ternura que sempre me encantou. Usei estas artimanhas para alegrar a Páscoa do afilhado Rafael e da sobrinha Camila lá no final dos anos 1980 (eles estão uns adultos hoje). Abusei, é claro, do ritual, depois de 1994, quando a minha filha Gabriela era uma menininha linda de cabelos castanhos sedosos e olhos claros (ela hoje já passa dos 24 anos). E, finalmente, protagonizei cenas semelhantes a partir de 2011, quando ganhei um novo afilhado, o Lucas, já ostentando agora os seus oito anos.

Na segunda-feira, inundada pelas lembranças destes afetos, não resisti ao cruzar com um olhar meigo e triste, mas muito triste mesmo, de uma menina índia, que arrisco não ter mais do que cinco anos, fitando uma pequena sacola plástica que eu carregava na mão com alguns chocolates que levava para casa para dar para Gabriela. A profundidade do seu olhar me tocou muito. Poderia ter ido embora sem perceber como aquilo ali me tocara. Poderia ir a alguma loja mais adiante e comprar algumas balas e guloseimas e voltar ao ponto em que se encontrava a menina e lhe entregar. Mas não fiz nada disto. Ali, imóvel, cheia de memórias, balançada de retratos da minha infância, sonhando, quem sabe, com um País melhor, entreguei-lhe a sacola de chocolates da Gabriela e sai correndo. Passos largos. Sem virar para ver a felicidade estampada na menina.

E hoje, eu só queria falar de flores. E hoje, eu só queria espalhar felicidade. E hoje, eu queria escrever um pouco de amenidades para alegrar o feriadão da Páscoa.

 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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