Kelly Matos: Ela não sabe ser pouco

Intensa em tudo na vida, a jornalista poderia ser a própria personagem da música 'Exagerado', de Cazuza

Kelly Matos em estúdio da Rádio Gaúcha - Crédito: Arquivo Pessoal

Quando Cazuza deixou a banda Barão Vermelho, em 1985, seu primeiro single, 'Exagerado', registrava: "... até nas coisas mais banais, pra mim é tudo ou nunca mais". Kelly Matos não era nascida, mas a música poderia ter sido feita para ela. Intensa, uma das primeiras frases soa como um alerta: "Falo mais que o homem da cobra", uma brincadeira em alusão à expressão popular, atribuída a quem fala muito e alto. A conversa, que dura cerca de uma hora e meia, poderia continuar pelo triplo do tempo, sem "exageros" (com o perdão do trocadilho), mas a entrevista começou a invadir seu intervalo de almoço. 

E se tem algo no topo da lista de prazeres da jornalista, este é comer: "Quer me deixar feliz? Faz uma comida", ensina ela, que prefere salgados aos doces, completando em seguida, ao perceber o avançar da hora: "Cheguei a salivar, pois estou com fome". Na família da jornalista, formada pela Famecos, é comum a constatação de que, se engordasse por tudo que come, deveria estar muito acima do peso, mas a genética a favorece nesse quesito.

Com muito bom humor durante toda a conversa, Kelly conta que, de alguma forma, sempre quis ser jornalista, mesmo quando nem sabia o que era uma profissão. Isso porque, aos três anos de idade, escreveu a história da 'Mimi apaixonada', sua boneca preferida, em umas três ou quatro linhas, bem ao estilo "era uma vez". "Meus pais, claro, amaram e andavam com aquela cartinha para todo lado, mostrando o que a filha tinha feito", lembra. Sabe que é bem clichê, porém diz que escolheu o Jornalismo porque sempre gostou de ler e escrever. Simples assim. Aliás, no início da faculdade de Comunicação, chegou a cursar paralelamente Letras, na Ufrgs. Contudo, a intensa rotina a fez optar pela instituição particular.

Oito anos após o episódio da 'Mimi apaixonada', participou de um concurso de Zero Hora, dedicado aos jovens, o 'Jornalista por um dia'. Com um texto didático sobre política, foi uma das selecionadas. Deste feito, inclusive, guarda uma foto em que aparece ao lado de Rosane de Oliveira, a quem chama carinhosamente de madrinha no Jornalismo. "Achei a imagem esses dias e mandei para ela. Rimos e nos emocionamos, pois somos ligadas até hoje umbilicalmente", elogia.

Subindo cada degrau

Para ser, atualmente, uma das vozes mais conhecidas dos ouvintes da rádio Gaúcha, muitos degraus foram subidos. "Não foi meteórico", ela garante. A primeira experiência foi na Band News, quando esta ainda era um projeto bem inicial, em produção. Trabalhou com gente muito boa, que são seus amigos até hoje. Mas logo que surgiu uma oportunidade para estágio na RBS, inscreveu-se. Lembra, inclusive, que era a vaga 'patinho feio', pois era para o turno da noite. Entrou fazendo produção e, em tese, ficaria escondida, porém aquela que não consegue ficar parada percebeu que tinha espaço para deixar gravados materiais para o programa do Antônio Macedo, da manhã seguinte. Deixava um boletim pronto? Claro que não. Gravava cinco, seis. 

Quando surgiu a vaga para efetiva, escutou de André Machado que era a melhor estagiária que tinham no momento. "Eu me senti gigante com o elogio", recorda. Nem nos melhores sonhos de adolescência pensava em trabalhar com rádio, o negócio era escrever para jornal impresso. E olha que interessante: chegou a fazer teste para trabalhar em Zero Hora e não passou. E lá são vão 16 anos de RBS. Não sabe dizer quando foi a grande virada de chave na carreira, pois tiveram muitas. E isso a deixa muito segura de estar onde está. "Não saí de baixo e voei para cima. Subi cada degrau, comendo grama e engolindo poeira. A cada etapa, fui aprendendo tudo que podia." 

A reflexão não vem sem antes enaltecer o fato de, na época, ter apenas 18 anos e trabalhar com política "ao lado de ninguém menos do que Ana Amélia Lemos, André Machado e Rosane de Oliveira" - em referência à função de produtora do programa Atualidades. Isso porque a exigência era altíssima, e acontecia em uma época que não existia WhatsApp. Então, não era tão fácil conseguir alguns contatos. Lembra que foi uma das primeiras repórteres a falar com um ministro pelo Twitter. Era uma loucura, mas ela adorava. Quando foi contratada, garantiu aos líderes que seria a melhor produtora que eles teriam e se entregou novamente. Não havia telefone que ela não tivesse, da fonte, da esposa, da amante, de quem fosse. "Foi quando pratiquei ao máximo o famoso network", explica. 

A Disneylândia da Política

Quando recebeu a oportunidade de ir a Brasília participar de uma entrevista exclusiva com Dilma Rousseff, até então candidata à Presidência da República, parecia que tinha chegado na Disney, e disse para si mesma: "Quero trabalhar aqui". Surgiu uma vaga para ser repórter de jornal e este é considerado o seu hiato no rádio. Virou repórter da coluna de Carolina Bahia, e garante: foi incrível. A intensidade que a capital federal exige foi proporcional à principal característica da jornalista. 

Circulava e conversava muito com colegas de outros veículos, que eram ninguém menos do que Andréia Sadi, Matheus Leitão, Natuza Nery, entre outros, pessoas a quem caracteriza como "gente maravilhosa, que também comeu muita grama". Andréia foi para Folha de S. Paulo e logo carregou a amiga junto. Só que uns quatro ou cinco meses depois, a RBS chamou de volta, mas dessa vez na rádio. Essa é uma fase da trajetória que diz que era como se a tivessem levado para o castelo da Cinderela, de tão fascinada que ficava.

Era cansativo, sim, afinal, tinha que estar em muitos lugares, pois Kelly era a única correspondente para cobrir tudo. Acompanhou pautas como julgamento do Mensalão, protestos de 2013, invasões ao Congresso Nacional. "Brasília foi um grande salto. Tem a Kelly antes e depois de lá", sentencia ela, que emagreceu cerca de 10 kg nesta época, uma vez que tinha que caminhar por toda a Esplanada. Foi lá, inclusive, que parou de usar salto alto, já que era impossível aguentar a loucura e a imensidão da Praça dos Três Poderes a pé.

Quando a avó materna faleceu, dona Lúcia, sua mãe, ficou bastante abalada, o que fez a jornalista perceber que queria ficar mais perto da família naquele momento. Como muitas bênçãos na vida, Daniel Scola estava montando a equipe dele e esta foi mais uma oportunidade que Kelly não deixou passar. Engana-se quem pensa que ela voltou para ancorar o 'Timeline'. O retorno aconteceu para reportagens comuns, os famosos buracos de rua, falta d'água, etc. 

Somente no final de 2014, quando a empresa formatou o programa que substituiria o 'Polêmica', de Lauro Quadros, foi que surgiu o convite para mais uma virada de chave. Kelly, com perfil bem formal, uniu-se a David Coimbra, que era colunista de Zero Hora, e Luciano Potter, com história no Entretenimento. "O Timeline foi um sucesso estrondoso. Mudamos a nossa relação, encontramos um caminho unindo os três perfis e, hoje, nos entendemos só no olhar", resume.

Outros marcos

Nem só de idas e vindas se faz a carreira de Kelly Matos. Outros momentos foram históricos para ela, como a famosa lista do Janout, na Lava Jato, notícia que cobriu como única repórter gaúcha. Não bastasse toda presença da política na trajetória, sempre foi alucinada por futebol, especialmente no que se refere ao Internacional, o time do coração. Quando Luciano Périco "se aposentou da torcida", a Gaúcha resolveu fazer uma experiência, e ela, claro, topou. A loucura ficou por conta de não ter abandonado os compromissos anteriores e logo veio a brincadeira de que a jornalista morava na RBS. "As pessoas me perguntam por que eu aceitei. Simples, eu amo uma bronca", diz, aos risos. Ou melhor, às gargalhadas, como lhe é peculiar.

No meio do caminho, também criou o 'Saia de Redação', um conteúdo de vídeo, voltado ao futebol e comandado apenas por mulheres. Recentemente, lançou um podcast diário, o 'Descomplica, Kelly'. Essa imensidão de demandas acontece por achar que sempre pode fazer mais. Ela sabe como ninguém o quanto isso lhe custa em saúde mental; entretanto, investe em acompanhamento psicoterápico e meditação guiada: "Hoje, tenho um pouco de consciência disso, mas só um pouco", brinca.

Kelly ainda foi a primeira mulher a participar do 'Sala de Redação', principal atração esportiva da rádio. Quando a empresa quis repaginar as tardes, lá estava a jornalista, participando da criação do Gaúcha Mais. "E, graças a Deus, as coisas foram dando certo", assegura, aliviada. Deveria parar um pouco? Sim. Consegue? Não. Hoje, apresenta dois programas diários, que somam três horas por dia, sendo que, para cada uma delas, dedica pelo menos mais uma hora de preparação. Gosta de ler, pesquisar, entender os assuntos do dia e brinca que é o terror da produção. "Podia chegar e apresentar, cumprir o que foi preparado? Podia. Mas não faço." 

Ainda escreve uma coluna em GZH, que não exige periodicidade, mas entende que é preciso publicar sempre que tem informação relevante. Além disso, mantém diversos canais de interação - Twitter, páginas pessoal e profissional no Facebook, Instagram, Linkedin, Telegram e Spotify. Em todas elas, produz conteúdo específico e, como não poderia ser diferente, faz tudo sozinha. "São as plataformas que uso para divulgar tudo que faço. Não sou influenciadora, sou jornalista da RBS", deixa claro.

 Sempre juntos. Sempre mesmo

A intensidade de Kelly não se restringe à entrega profissional. A vida pessoal segue exatamente o mesmo ritmo. Ela é aquela que fala sem parar, ri alto e atravessa os outros. E se tem algo que lhe faz parar de trabalhar, esse algo tem nome, ou melhor, sobrenome: família Matos. E esta não se restringe à dona Lúcia, assistente social; seu Erli, comerciante; e o irmão Maycon, administrador, porém se estende aos tios e primos. "É bizarro, mas fazemos absolutamente tudo juntos. Se tem alguém doente, vai ter, provavelmente, uns 15 carros no estacionamento do hospital. A gente não sabe ser pouco", conta. Os Matos mantêm no bairro Belém Novo uma casa que era do avô, e foi reformada com a construção de mais um andar para que todos pudessem ficar juntos. 

Além disso, são ligados ao tradicionalismo gaúcho e, na Semana Farroupilha, montam piquete no Parque Harmonia. É tanta aglomeração (tudo antes da pandemia, como ela faz questão de frisar), que seu último aniversário antes da crise sanitária era para ser "apenas um bolinho", mas resultou em 120 convidados, dois salões alugados para acomodar todos e umas oito horas de carne assando. "A gente não sabe brincar, definitivamente", admite.

Naturais de Balneário Gaivota, um distrito de Sombrio, em Santa Catarina, a beira da praia é outro habitat natural, mas nada de guarda-sol, pois não abrigaria todo mundo. Eles vão com um guarda-sol imenso e carrinho de churrasco personalizado por um dos tios engenheiro. "Sabe a casa do Tufão, na novela Avenida Brasil? É o retrato da minha família", compara. E toda essa intensidade vem da herança materna, pois seu Erli não gosta da função, é tímido e a filha até brinca que ele tem fobia social. Ou seja, quando começa a bagunça, o pai fica cinco minutos e sai correndo. 

Amor na hora certa

Casada com o jornalista e colega Eduardo Gabardo, eles se conheceram assim que entrou na empresa e, desde então, ele diz que desejava namorá-la. "Acho que nunca contei isso, mas sempre que ele viajava, me trazia alguma lembrança. Tenho esses presentes até hoje", revela, contando ainda que chegaram a "ensaiar um namorico" há alguns anos, no entanto, não vingou. Definitivamente, não foi amor à primeira vista, mas chegou na hora certa. Saiu de um relacionamento e estava decidida a ficar solteira, porém no mês seguinte ao término, veio a formatura de uma colega de ambos. Pronto. Foi quando Gabardo sentenciou ao pé do ouvido da amada: "A partir de hoje, tu és minha namorada".

Ele estava certo. Desde então, vieram viagens, cachorros, uma casa em comum e um casamento pra lá de inusitado. "Tivemos o momento de nos conhecer, depois de nos dar uma olhadinha e, finalmente, o momento em que começamos a nos amar", resume. Para Kelly, o marido trouxe equilíbrio, organização e serenidade, itens que faltavam na correria da sua vida. Apesar de se dizer careta e romântica, admite que não gosta da história de duas metades da laranja: "Somos duas laranjas inteiras, com Aperol e um pouco de Tônica". 

Por terem muitos amigos em comum - e a família Matos com aquela característica de não ser nada básica -, haviam decidido casar-se em Nova Iorque, apenas os dois. Viagem programada, providências tomadas e...? Pandemia. Planos estragados e tudo adiado sem data. Um dia, em casa, conversando com um grande amigo, o Padre Ceron, que comanda um abrigo para crianças no bairro Restinga, questionou-o: "O que estás fazendo? Podemos ir na capela e casar agora?", ainda que surpreso, o sacerdote concordou. Gabardo, por sua vez, não levou a proposta muito a sério, mas também topou. Antes de chegar ao destino, foram a uma cafeteria, onde, na saída, Kelly avistou um bonito arranjo de flores e pediu emprestado para usar de buquê. 

No caminho, ligou para David Coimbra convidando-o para ser o padrinho, avisou mãe e sogra, e todos participaram virtualmente. E foi assim que o noivo entrou na igreja, de bermuda e camiseta, de mãos dadas com duas crianças, uma vestida de tricolor e a outra, de colorado. Segundo a noiva, David fez seu papel com um discurso lindo, e os recém-casados saíram da igreja ao som de 'Parabéns a você', cantado pelos pequenos da casa-lar. "Dos planos de Nova Iorque para um abrigo na Restinga. Essa sou eu", diverte-se.

Parar: difícil, porém necessário

Momentos de folga são raríssimos, mas não por conta da escala profissional. Ocorre que ela não consegue parar, ainda que saiba da importância do ócio. Gosta de ver séries, e elas precisam ser leves, que a façam rir, bem ao estilo besteirol, afinal, o trabalho é suficientemente pesado. A curiosidade fica por conta de não se permitir ler nada antes, nem sinopse, o grande barato é ser surpreendida. Isso só não vale para novelas, pois, nesse quesito, lê todos os sites de fofocas para saber quem vai ficar com quem. É fã de Lady Night, programa do Multishow comandado por Tatá Werneck, e acha que todo mundo deveria assistir ao filme 'Relatos Selvagens', de Damián Szifron.

Confessa que é viciada em celular e sabe que passa tempo demais com o aparelho. A propósito, quando fala disso, conta que, antes da entrevista, conferiu seu WhatsApp e nele havia nada menos do que 578 mensagens não lidas. "O melhor dia para mim foi quando caiu o aplicativo para todo mundo", diz, rindo de si mesma. Considerado um grande passo, decidiu retirar do celular as notificações de mensagens, pois, se ver algo na tela do aparelho, não consegue ignorar. Durante vários momentos, Kelly frisa a importância de não glamourizar tudo isso e saber que se pagam preços bem altos pela postura. "Saúde mental é essencial e todos precisam cuidar disso", ensina.

Recentemente, a jornalista se viu inundada de carinho após abrir o coração em uma coluna assinada em Zero Hora, quando substituiu o amigo David. É que ela relatou duas perdas gestacionais, e o que era para ser uma mensagem a outras mulheres que passaram pelo mesmo, virou um mar de relatos e abraços virtuais. "Sempre quis ser mãe, mas nunca defini uma data. Essas perdas me mostraram uma dor que jamais imaginei sentir. Quando decidi escrever sobre isso, queria gritar para todas que isso é normal, que é o pior dia da vida, mas que passa." A maternidade segue desejada, porém ao seu tempo. Além disso, aprendeu a responder sobre seus sonhos na esfera pessoal, pois a profissão é o que faz, não o que ela é. 

E é exatamente nessa hora que faz uma pausa para responder: "Mas, afinal, quem é Kelly Matos?". Breve silêncio, alguns respiros e a conclusão de que a pergunta é muito difícil. Como em tudo na vida, ela não foge da resposta, se diz muito amorosa, mas admite que perde a paciência facilmente. De alguma forma, ela sempre quer consertar algo, ajudar alguém, salvar o mundo. "A Kelly nunca é 100, é sempre 120, 150, 180, 200. Eu sou a própria música 'Exagerado', do Cazuza'!"

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