Como a inteligência artificial está transformando os processos seletivos na Indústria Criativa?

Ferramentas automatizadas aceleram contratações, mas levantam debates sobre transparência, inclusão e a preservação da sensibilidade humana nas decisões de recrutamento

Processos seletivos compostos por diversas etapas, incluindo testes de lógica, raciocínio, comportamento, fit cultural com a empresa. Nesse meio de tempo, respostas definitivas dadas por softwares que traçam inteiras personalidades com base nas alternativas escolhidas. Caso selecionado, o candidato poderá ser convocado para fases posteriores, que vão desde entrevista com o RH ou com os gestores até resolução de cases. Ou, na pior das hipóteses, receber uma devolutiva negativa, contendo uma resposta genérica e não explicativa dos motivos de ter sido eliminado, sem que tenha, necessariamente, passado pelo crivo de analistas humanos antes da sumária exclusão.

É cada vez mais frequente o uso de plataformas de recrutamento na Indústria Criativa para processos seletivos balizadas pela inteligência artificial, que desempenha um papel de administração e qualificação de como funciona a entrada de novos trabalhadores em empresas. Em diversos casos, a IA traça perfis e define critérios para que um candidato avance, o que agiliza o processo para as organizações.

Contudo, ao mesmo tempo, coloca em jogo qual é o limite da regulação que uma inteligência não humana pode aplicar sobre comportamentos e personalidades essencialmente pessoais e humanos. Qual é o futuro que se apresenta com o advento da IA para uma lógica de contratação comunicacional?

Quando a IA passou a ser opção?

A adoção da inteligência artificial (IA) em processos seletivos começou a ganhar relevância no ecossistema corporativo a partir da segunda metade da década de 2010, especialmente impulsionada pelo avanço de tecnologias de big data, aprendizado de máquina (machine learning) e análise preditiva. Nesse período, o discurso da eficiência e da suposta neutralidade algorítmica passou a seduzir áreas de Recursos Humanos (RH), tradicionalmente marcadas por métodos mais subjetivos de triagem e avaliação de candidatos.

Uma das primeiras grandes empresas a experimentar a aplicação da IA em processos de recrutamento foi a Amazon, que por volta de 2014, iniciou o desenvolvimento de um sistema interno baseado em machine learning para avaliar currículos de maneira automatizada. O caso se tornou emblemático porque, poucos anos depois, a empresa abandonou o projeto ao constatar que o algoritmo estava reproduzindo discriminações de gênero - penalizando sistematicamente candidatas mulheres para cargos de tecnologia, com base em dados históricos enviesados do próprio setor.

Este episódio serviu de alerta para a comunidade internacional de RH e tecnologia: ficou evidente que o uso da IA em seleção de pessoal não é neutro e precisa ser acompanhado de princípios éticos, auditorias independentes e diversidade nos conjuntos de dados de treinamento. A partir de então, surgiram movimentos como o AI Now Institute, da Universidade de Nova York, e a publicação de diretrizes por parte da União Europeia e da OCDE, que passaram a orientar boas práticas para uso responsável da IA no trabalho.

No Brasil, o uso de IA em RH se consolidou por meio de startups como Gupy, que desde 2015 vem oferecendo alternativas baseadas em algoritmos para triagem curricular e ranqueamento de candidatos. Fundada em 2015 por Mariana Dias, ex-gerente de RH da Ambev, a companhia nasceu com a proposta de automatizar processos de recrutamento e seleção, incorporando também funcionalidades voltadas ao onboarding e desenvolvimento de trabalhadores. 

A IA, batizada de Gaia, é responsável por analisar dados dos candidatos, como currículos, testes, respostas a perguntas e interações com a plataforma. Tudo com o intuito de gerar uma pontuação de compatibilidade com a vaga, ranqueando perfis de acordo com critérios definidos pelas empresas contratantes. 

O sistema aprende com os dados de processos anteriores e ajusta suas recomendações de forma contínua. A promessa central e inicial é de eficiência, agilidade e padronização, especialmente para empresas que recebem milhares de candidaturas. E, toda essa mudança, não passa longe da Indústria Criativa. Pelo contrário.

Raquel Recuero, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), destaca a 

redução de tempo proporcionada pelos recursos de IA e pela análise de dados, permitindo que se compilem informações sobre candidatos de maneira ágil. "As ferramentas de IA que temos hoje funcionam como agregadores de informações, capazes de analisar e gerar outputs muito mais específicos", comenta.

A IA pode conduzir a uma desumanização dos processos?

O uso de inteligência artificial tem gerado questionamentos quanto à humanização dos processos seletivos de empresas. Pode acontecer uma impessoalização desses atos, sobretudo, quando a IA é aplicada de maneira acrítica e automatizada. Isso acontece porque, ao transformar candidatos em dados quantificáveis, a IA tende a reduzir trajetórias profissionais complexas a padrões e critérios predefinidos. 

Em vez de considerar a história, o contexto e o potencial de cada pessoa, a máquina avalia palavras-chave, métricas e informações padronizadas, como tempo de experiência ou a formação acadêmica. Com isso, perfis atípicos, como aqueles com lacunas no currículo, mudanças de carreira ou experiências informais, muitas vezes, são descartados antes mesmo de serem lidos por um recrutador humano.

Daniel Blumen, sócio-diretor da Blumen Consultoria, empresa especializada em recolocação profissional e transição de carreira, afirma que a utilização de IA significa uma maior agilidade para as empresas e para os candidatos, proporcionando a ambos possibilidades de redução de custos nos processos de seleção e de facilitação de logísticas - sem o candidato, por exemplo, precisar deslocar-se a uma sede física para uma entrevista presencial. 

Ao mesmo tempo, aponta que é necessário os candidatos se adequarem ao fator tecnológico e busquem atualização para obter bons ranqueamentos nas plataformas. "Evitar a tecnologia ou não ter resiliência para passar todas as etapas tecnológicas não deixa de ser uma forma de triagem, já que existe uma oferta tão grande de bons candidatos. É importante dominarmos a tecnologia para que ela não nos domine", destaca.

O profissional aborda que, da parte da empresa, os principais desafios estão em não sobrecarregar o candidato com tantas tecnologias e etapas de triagem. Humanizar as etapas, de acordo com ele, é um compromisso que deve ser realizado o quanto antes, pois o candidato pode se sentir em um processo que apenas envolve tecnologia sem humanização. "O fato de muitas empresas estarem adotando processos robustos envolvendo tecnologia e IA tem feito com que bons candidatos optem por não participar em função do desgaste gerado no processo", complementa.

Muitos sistemas são programados para eliminar candidatos automaticamente com base em algoritmos, o que significa que uma decisão pode ser tomada em poucos segundos, sem qualquer espaço para escuta ou interpretação subjetiva. Esse filtro automático contribui para uma experiência de frustração e anonimato para quem se candidata, já que é comum não receber retorno nem ter clareza sobre os motivos da eliminação.

Quando usada como ferramenta absoluta, sem mediação humana, sem critérios transparentes e sem preocupação ética, a inteligência artificial pode, sim, conduzir os processos de seleção a caminhos não humanizados ou justos. Na contramão dessa possibilidade de tendência, a área da comunicação tem contado, cada vez mais, com a humanização de seus processos. 

Um exemplo disso é a seleção realizada pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que utiliza ferramentas de IA para conferir agilidade e organização a seus processos, mas não abandonou a análise de pessoas reais no momento de selecionar novos trabalhadores. "A triagem em si continua sendo feita de forma totalmente humana: são nossas recrutadoras que analisam os perfis, aplicam os filtros, entram em contato com os candidatos, conduzem as entrevistas e encaminham os finalistas para os gestores", explica Renata Saldanha, analista de RH no SBT-RS.

A profissional comenta sobre a  transformação oferecida aos processos seletivos pela IA, igualmente identificando mais agilidade na triagem e tomada de decisões. Ao mesmo tempo, sinaliza a possibilidade de desumanização, ocasionada por um processo mais automatizado. "Nada substitui o diálogo direto com o recrutador e o gestor da área", opina, contando que, no SBT como um todo, as plataformas ranqueiam os candidatos de acordo com o perfil e a similaridade da vaga, mas que a seleção, em si, é humana.

As tecnologias atuais ainda têm limitações significativas para captar aspectos subjetivos e fundamentais para o desempenho no trabalho, como empatia, criatividade, resiliência ou capacidade de adaptação. Esses elementos, muitas vezes identificados em entrevistas presenciais, são difíceis de medir por meio de testes automatizados ou leitura de currículos por inteligência artificial. 

Por isso, é necessário que as empresas apliquem os recursos de IA de acordo com padrões éticos e humanizados, atentos às subjetividades que a tecnologia ou as máquinas não são capazes de captar, para evitar uma seleção absolutamente comprometida com o aspecto meramente técnico.

O futuro dos processos de seleção

O debate acerca do futuro dos processos seletivos empresariais terá centralidade na ambiguidade entre a necessidade de uso dos fatores tecnológicos e o fator ético, levando em conta que é necessário uma regulação humana para que se evite uma automatização que segregue os candidatos unicamente com base nos algoritmos. 

Isso faz com que seja necessário pensar a respeito de questões como o número de etapas nos processos, transparência, filtragem absoluta automática, inclusão e preservação da dimensão humana trazendo a tecnologia como uma aliada nesse processo, e não como o principal agente.

Para Raquel, a tendência é que as seletivas com IA tenham vindo para ficar. A questão temporal, na opinião da pesquisadora, já se traduz como um dos grandes marcos do advento da inteligência artificial, com processos cada vez mais ágeis em seletivas. "Com o passar do tempo, teremos mais mudanças, e mais significativas, dependendo do desenvolvimento de aplicações específicas para essas ferramentas de IA", complementa.

Etapas mais operacionais do recrutamento, como o recebimento de currículos, a análise de palavras-chave, a checagem de antecedentes ou a aplicação de testes cognitivos padronizados, estão em um caminho de tornarem-se, na maior parte, automatizadas. "A tendência de ter um envolvimento maior da tecnologia é frente a posições de nível de entrada, assistentes, analistas, coordenadores, cargos administrativos e operacionais. Posições mais seniores tendem a envolver menos etapas tecnológicas e mais humanização", explica Daniel. 

Para ele, é fundamental que os candidatos invistam em tempo tecnológico, pois quem não acompanhar o ritmo dos avanços, ficará para trás. "Quem não está digitalizado costumo chamar de 'fantasma digital'. Esta pessoa não será encontrada por recrutadores se, por exemplo, ela não tiver um perfil no Linkedin. E se tiver, é importante que seja um perfil bem feito", comenta.

Renata, na mesma linha, diz que o impacto social que já é gerado pelo de IA abrangerá, ainda mais, pessoas que não estejam atualizadas em relação às mudanças. "Há uma pressão crescente para [os candidatos] se adequarem aos critérios da IA, o que pode comprometer a autenticidade nas entrevistas e excluir aqueles com menor familiaridade tecnológica. Isso levanta questões sobre inclusão digital", pondera.

Raquel também sinaliza que, para os candidatos, os maiores efeitos repercutirão na construção de currículos e de respostas, evidenciando que, ao mesmo tempo em que será necessário maior domínio dos recursos de IA, a sua natureza, passível de equívocos, também deverá ser observada. "Essas ferramentas ainda alucinam bastante e podem gerar resultados errados. Sempre há a possibilidade de aparecer algo 'inventado' ou 'incorreto' e, por isso, a revisão é sempre essencial", alerta.

O caminho que pode apontar para um futuro mais promissor e ético desse cenário envolve a adoção de modelos híbridos, em que a IA atua como aliada, e não como substituta da inteligência humana. Isso significa que as tecnologias devem ser usadas para apoiar o trabalho de profissionais de RH, liberando-os de tarefas repetitivas, para que possam se concentrar no acolhimento e na avaliação dos potenciais subjetivos dos candidatos. 

A valorização e verificação de habilidades comportamentais, como empatia, senso crítico, criatividade e adaptabilidade continuarão sendo centrais, mesmo em um mundo guiado por dados e pela tecnologia. Além disso, para a construção do futuro dos processos seletivos, será necessário que o próprio desenvolvimento dos sistemas de IA seja ético, para que as ferramentas contem com uma base auditável e transparente. 

A preocupação com viés algorítmico, com o direito à explicação das decisões automatizadas e com a proteção de dados pessoais será cada vez mais central e exigirá tanto regulamentação governamental quanto compromisso por parte das empresas. O desafio será criar processos que unam eficiência tecnológica com justiça social, assegurando que os algoritmos não reforcem desigualdades históricas.

Novas formas de recrutamento devem emergir com mais força, como o uso de simulações em ambientes virtuais, entrevistas por realidade aumentada, avaliações baseadas em análise de comportamento em vídeo e jogos interativos - gamificação. Esses recursos permitem mapear habilidades de forma dinâmica e já estão sendo experimentados por empresas inovadoras em setores como tecnologia e comunicação. 

Além disso, o futuro dos processos seletivos também depende de uma mudança cultural: é preciso compreender que o recrutamento não é apenas uma ferramenta para suprir vagas, mas uma etapa estratégica e sensível de construção de diversidade, inovação e cultura organizacional.

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